
Thiago Guimarães, Estevão Sabatier, Marcos Kiyoto, Eduardo Ganança e Oliver Cauã Cauê
A SPTrans pode ser considerada como agência de transportes coletivo de referência no Brasil e no exterior
Menos de um mês após ser reeleito, o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), passou a defender abertamente a extinção da SPTrans (São Paulo Transporte). Até agora, esta é a mais expressiva indicação do direcionamento que ele imprimirá à política de mobilidade urbana em seu segundo mandato. Publicamente, Nunes argumenta que a extinção do órgão responsável pelo planejamento, gestão e fiscalização do principal meio de transporte coletivo é uma oportunidade de enxugar a máquina estatal. Sua intenção é transferir parte das funções e dos funcionários da SPTrans para a SPRegula (Agência Reguladora de Serviços Públicos de São Paulo); outra parte seria dispensada.
Prestes a completar 30 anos, a SPTrans é o pilar institucional do funcionamento de um dos maiores sistemas de transporte coletivo por ônibus do mundo, que realiza 7,2 milhões de viagens por dia útil 1 Dados de amostras de dias úteis de setembro e outubro de 2024 conforme divulgado aqui. . Mais de 13 mil veículos operam em mais de 1,3 mil linhas que atendem praticamente todos os bairros da cidade e alimentam o sistema metroferroviário 2 Em novembro de 2024, a frota de ônibus compreendia 13.287 veículos. Dados da SPTrans disponíveis aqui. . Para muitos, os ônibus são a única opção para deslocamentos que não podem ser feitos a pé.
Apesar de o transporte municipal por ônibus ser marcado por deficiências, a existência da SPTrans contribui para garantir a oferta de serviço com algum grau de organização e qualidade. Se ônibus atrasados e superlotados ainda são realidade em algumas linhas e horários, o problema teria dimensões maiores sem a fiscalização dos serviços prestados. A companhia teve um papel central na introdução da política de integração tarifária por meio do Bilhete Único, em 2004, decisiva para a ampliação do uso do transporte coletivo. A SPTrans participou da concepção e da implementação da tecnologia de bilhetagem eletrônica, além de atuar como agente coordenador da partilha da receita tarifária entre os operadores, tendo uma função mediadora em um setor tradicionalmente dominado por oligopólios e atualmente influenciado pelo crime organizado. Também atua no planejamento de linhas específicas e de redes de transporte, como a da Madrugada, que atende 600 mil usuários por mês. A instituição contribuiu ainda para a produção dos mais importantes planos para a região metropolitana desenvolvidos nas últimas décadas.
A proposta de extinção da SPTrans defendida pelo prefeito parece não contemplar a diversidade funcional de um órgão de perfil técnico especializado e seu papel estruturador na mobilidade urbana em São Paulo, para além da gestão de contratos
O amplo portfólio de atribuições da SPTrans abrange funções menos conhecidas. É a SPTrans a responsável pela manutenção do pavimento dos corredores e faixas exclusivas de ônibus e pelo disciplinamento do uso de suas vias, emitindo cerca de 5 mil autuações por mês, em média. Além disso, gerencia e fiscaliza os serviços de táxi, o transporte escolar e o concede autorização para o transporte fretado. Neste ano, a SPTrans se envolveu diretamente na viabilização de uma das principais marcas da atual gestão: a introdução do transporte hidroviário como opção de mobilidade na cidade. Atualmente, estuda a ampliação deste modo de transporte para a represa Guarapiranga e rios.
Não seria exagero se referir à SPTrans como agência de transportes coletivo de referência no Brasil e no exterior. O processo de eletrificação da frota de ônibus em São Paulo – importante para a redução das emissões de gases do efeito estufa – envolve o trabalho de engenheiros da SPTrans, que precisam aprovar os projetos de veículos antes de sua adoção. Cidades brasileiras com estruturas institucionais mais “enxutas” provavelmente se balizariam pelo crivo da SPTrans para a adoção de veículos elétricos em suas frotas de ônibus, permitindo que o país avance no cumprimento de seus compromissos climáticos internacionais.
A extinção da SPTrans sinaliza dois movimentos relacionados. O primeiro é reforçar a transferência da operação dos serviços de transporte de passageiros na Região Metropolitana de São Paulo ao setor privado. Embora a notícia sobre o fechamento da SPTrans tenha chegado subitamente e sequer tenha sido comunicada de modo oficial, nem mesmo para seus empregados, ela não deveria ser recebida com surpresa. Se confirmado, o fim da SPTrans representaria mais uma etapa na trajetória de ampla desestatização do setor, que perpassa diversas administrações. Teve como antecedente a extinção da CMTC (Companhia Municipal de Transporte Coletivo) e é contemporânea às pretensões do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) de conceder ao setor privado a operação de todas as linhas de metrô e trem, além de extinguir a EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo).
O segundo movimento consiste na concentração de contratos municipais de enorme vulto em uma só entidade, a SP Regula, criando uma “super pasta”, que certamente será disputada por atores políticos e interesses econômicos. Criada em 2020, ela já se incumbe da regulação de diversos serviços municipais concedidos a particulares, como o funerário, o auxílio-alimentação, a coleta seletiva de resíduos, a varrição e a limpeza urbana. Se incorporar os contratos de transporte coletivo, estima-se que o volume supervisionado pela SPRegula saltará de R$ 8 bilhões para R$ 20 bilhões por ano.
A proposta de extinção da SPTrans defendida pelo prefeito parece não contemplar a diversidade funcional de um órgão de perfil técnico especializado e seu papel estruturador na mobilidade urbana em São Paulo, para além da gestão de contratos. Desacompanhada de um projeto consistente de novo arranjo institucional que demonstre como as atribuições da SPTrans seriam absorvidas, a proposta soa irresponsável por colocar sob risco de colapso o funcionamento do transporte coletivo urbano. O esvaziamento da capacidade estatal de planejamento, gestão e fiscalização não só dos contratos, mas também dos próprios serviços de transporte – atribuições que dificilmente serão absorvidas pela SPRegula – tende a não produzir ganhos de eficiência e a ser fatal para o momento de crise climática em que o transporte coletivo deveria ser efetivamente
priorizado.