Caminhar é preciso

A forma mais básica de mobilidade é saudável e sustentável, mas não recebe os investimentos necessários nas grandes cidades brasileiras

Por Maurício Oliveira.

Publicado originalmente em Estadão Mobilidade.

20% da população da capital paulista se locomove exclusivamente por caminhadas, parcela que está concentrada nas faixas de menor renda. Foto: Getty Images

Qual é o meio de transporte mais utilizado no Brasil? Acertou quem respondeu “a caminhada”. De cada 100 deslocamentos realizados pelos brasileiros, 39 são cumpridos a pé. Infelizmente, a maior parte dessas caminhadas não reflete uma escolha consciente pela saúde e sustentabilidade, e sim a incapacidade de pagar as tarifas do transporte coletivo ou a inexistência dessa opção.

Embora o direito de ir e vir seja um pilar da democracia brasileira, previsto pela Constituição Federal de 1988, os sistemas de transporte público abrangem apenas 48% dos municípios brasileiros. Na maioria das cidades que dispõem desse serviço, a qualidade está abaixo da necessidade – especialmente depois da pandemia, que provocou uma forte queda do movimento de passageiros e afetou ainda mais o equilíbrio financeiro dos sistemas de transporte.

Apesar do período recente em que o problema se agravou, a redução do número de passageiros nos ônibus urbanos do Brasil é um fenômeno que vem sendo registrado desde meados da década de 1990. De lá para cá, o movimento caiu pela metade – o índice de passageiros por quilômetro passou de 2,6 para 1,4, de acordo com dados da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP).

“Isso provoca um círculo vicioso. Com menos passageiros, o custo passa a ser dividido entre uma quantidade menor de pessoas, o que faz o preço da passagem aumentar. Isso afasta ainda mais usuários”, analisa Luiz Carlos Néspoli, superintendente da ANTP. Enquanto parte do contingente que deixou os transportes coletivos adotou alternativas como motos e bicicletas, outra parte se viu obrigada a recorrer às caminhadas.

Uma pesquisa da entidade avaliou a percepção de qualidade do transporte público na Região Metropolitana de São Paulo, considerando todas as etapas desde o momento em que as pessoas saem de casa até a chegada ao destino, e concluiu que os trechos a pé receberam a pior avaliação. “Isso certamente contamina a experiência como um todo”, avalia Néspoli.

Maior proximidade

Cerca de 20% da população da capital paulista se locomove exclusivamente por caminhadas, parcela que está concentrada nas faixas de menor renda. Caminhar pelas grandes cidades brasileiras não costuma, contudo, ser uma experiência tranquila e agradá­vel, contudo – especialmente nas áreas de periferia. Os problemas são muitos: calçadas inexistentes ou inadequadas, arborização insuficiente, poluição atmosférica e sonora, baixa iluminação, riscos de assaltos, falta de sinalização, riscos nas travessias, desrespeito por parte dos motoristas e motociclistas.

Para Oliver Cauê Scarcelli, diretor da Cidadeapé – organização que defende a caminhada como opção saudável e sustentável para a mobilidade –, São Paulo e outras grandes cidades brasileiras perderam a oportunidade, trazida pela pandemia, de criar melhores condições para impulsionar a prática. “O cenário da covid-19 levou muita gente a experimentar as caminhadas, mas, como as condições proporcionadas não são as melhores, a maioria das pessoas retomou os hábitos antigos”, avalia Scarcelli.

Para a Cidadeapé, que publicou o Guia de Defesa da Mobilidade a Pé, a caminhada não recebe investimentos compatíveis com o nível de importância que tem para a sociedade. “Esses investimentos certamente se pagam ao longo do tempo”, observa o diretor da instituição. Um exemplo está na recomendação da Organização Mundial da Saúde para que as pessoas cumpram pelo menos 8 mil passos diários (o equivalente a cerca de 6 km de caminhada) como estratégia para manter a saúde cardiovascular: quanto mais gente cumprir essa rotina, menor será a pressão futura sobre o sistema de saúde.

Outra vantagem do hábito de caminhar para o conjunto da sociedade é estreitar os laços das pessoas com suas comunidades. Isso resulta em fomento da economia local, já que quem costuma circular a pé desenvolve um nível de intimidade maior com os estabelecimentos próximos ao local de moradia ou de trabalho.