Ligne 1 du métro de São Paulo : les plus riches vont au Paradis[1]
São Paulo Metro Line 1: the upper class goes to Heaven[2]
Publicado originalmente na Confins - Revue Franco-brésilienne de Géographie (Paris).
Oliver Cauã Cauê França Scarcelli, geógrafo (UNESP) e Mestre em Planejamento e Gestão do Território (UFABC). oliver@cryptolab.net.
Il est diplômé en Géographie (UNESP) et titulaire d’un Master en Aménagement et Gestion du Territoire (UFABC).
Holds a bachelor’s degree in Geography (UNESP) and a master’s degree in Territory Planning and Management (UFABC).
Lucas Coutinho, geógrafo (UNESP) e Mestre em Geografia Humana (USP). lucascoutt@yahoo.com.br.
Il est diplômé en Géographie (UNESP) et titulaire d’un Master en Géographie Humaine (USP).
Holds a bachelor’s degree in Geography (UNESP) and a master’s degree in Human Geography.
Palavras-chave: transporte público coletivo, mobilidade urbana, planejamento urbano, Metrô de São Paulo, Brasil.
Résumé: L’article analyse le profil socio-économique de la population desservie par la ligne 1 – bleue – du métro de São Paulo au moment de son inauguration. Dans le cadre de nos recherches, nous avons cartographié les classes de revenus des habitants qui vivaient autour de cette ligne, interrogé des techniciens et des directeurs de la Companhia do Metropolitano et d’autres entités impliquées, ainsi qu’analysé des journaux, des magazines spécialisés et des documents techniques. Nous avons observé que le réseau souterrain a été conçu pour décongestionner le centre urbain en retirant les bus des rues. Cela répondrait aux intérêts des “classes moyennes” – qui possèdent des voitures – et du secteur tertiaire – qui recevrait un afflux plus important de clients et de collaborateurs automobilistes, en plus des nouveaux usagers du métro. Nous avons constaté que les strates de revenus les plus élevées étaient les plus favorisées par le nouvel équipement. L’écart de fréquentation est frappant : alors que 13% de la population la plus riche bénéficie de cette infrastructure, aucun des habitants des couches les plus pauvres n’en profite. Les habitants des périphéries étaient donc condamnés à continuer à utiliser les bus et les trains. Cela a reproduit notre modèle d’urbanisation périphérique : les quartiers éloignés du centre, aux infrastructures déficientes, sont laissés aux plus pauvres, tandis que les zones centrales, dotées de services urbains, sont occupées par les plus riches. Pour ces raisons, nous sommes d’accord avec Francisco de Oliveira (1982), qui attribue le grand poids des “classes moyennes” dans la politique urbaine au démantèlement des organisations ouvrières pendant la dictature militaire (1964-1985). Nous sommes également d’accord avec Silvana Zioni (1999), pour qui les politiques de transport de la période autoritaire ne sont sorties de terre que parce qu’elles servaient les intérêts des classes dominantes.
Mots-clés: transport en commun, mobilité, urbanisme, Metrô de São Paulo, Brésil.
Abstract: The article aims to analyze the socioeconomic profile of the population served by Line 1 – Blue of the São Paulo Metro at the time of its inauguration. In our research, we mapped the income classes of the households along this line, and also interviewed technicians and managers of Companhia do Metropolitano and other related entities, as well as analyzed newspapers, specialized magazines and technical documents. We found that the subway network was designed to result in the downtown traffic decongestion, thanks to the removal of buses from the streets. This would meet the interests of the middle classes – car-owners – and the tertiary sector – which would benefit from the greater influx of car commuters, in addition to the new Metro users. We verified that the higher income groups were the most favored by the new equipment. There was a striking discrepancy in attendance between classes: while 13 percent of the wealthiest population enjoyed this infrastructure, none of the poorest population benefited from it. Suburban residents were, therefore, condemned to keep commuting by bus and train. Thus, our peripheral urbanization pattern was reproduced, since the poorest are relegated to the districts far from the center, that are often characterized by deficient infrastructure, while the richest occupy the central areas, endowed with urban services. For these reasons, we agree with Francisco de Oliveira (1982), for whom the “middle classes” carried great weight in urban policies as a result of the dismantling of workers’ organizations by the last Brazilian military regime (1964–1985). We also subscribe to Silvana Zioni (1999), for whom the transport policies of that authoritarian period only got off the ground because they served the interest of the dominant classes.
Keywords: public transport, urban mobility, urban planning, São Paulo Metro, Brazil.
Até o começo dos anos 1970, nenhuma cidade brasileira possuía sistema de metrô. Por essa razão, na maior metrópole do país, o congestionamento assumia proporções alarmantes. Em São Paulo, havia poucos trens de passageiros (HMD, 1968); a frota de ônibus era diminuta (com apenas cinco mil veículos; HMD, 1968) e os serviços de bonde e tramway haviam sido descontinuados (HMD, 1968). A esse cenário, devemos acrescentar o formidável crescimento da população, que triplicou entre 1940 e 1960 (Ferraz, 1969), a grande concentração de empregos na região central (Frúgoli Júnior, 2000) e uma produção recorde de automóveis no ABC paulista (Guimarães, 1980). A cidade beirava a paralisia total: os ônibus circulavam a 4 km/hora (O Estado de S. Paulo, 1966), e “o índice global de viagens por pessoa na área de pesquisa” era “praticamente igual a 1 por dia”, “valor […] muito baixo quando comparado com outras cidades, revelando a baixa mobilidade da população de São Paulo” (HMD, 1968). Para a Agência Nacional, a metrópole paulistana encarnava o “diagnóstico sombrio de uma grande cidade moderna” (Brasil, 1971).
O “Estudo de um Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo”, escrito por engenheiros da Prefeitura em 1930, pretendia organizar a circulação de carros e a expansão dos bairros residenciais nos moldes das “belas cidades europeias” (Maia, 1930). Liderados por Francisco Prestes Maia, esses engenheiros não viam a necessidade de se construir metrô. Acreditavam que largas avenidas, interligadas por anéis concêntricos, seriam suficientes para melhorar a mobilidade da população.
Figura 1 – Esquema teórico do Plano de Avenidas de São Paulo
Fonte: Maia, 1930.
Décadas depois, Prestes Maia – eleito prefeito da cidade em 1961 – e Faria Lima – que o sucederia na Prefeitura em 1965 – ainda insistiam no rodoviarismo, mas já não pensavam somente em abrir avenidas. Para ambos, uma rede de metrô poderia retirar ônibus das ruas e dar mais fluidez aos carros (Scarcelli, 2020). E decidiram construir o metropolitano. Então, foi preciso escolher por qual linha de metrô começar. O plano de metrô de Prestes Maia, de 1956, era o mais sofisticado, e forneceu as bases para a rede que viria a ser construída a partir de 1969 (HMD, 1968). Nele, havia duas linhas principais – Norte – Sul e Leste – Oeste –, que atenderiam a demandas de passageiros “estatisticamente idênticas” (HMD, 1968).
De acordo com Odon Pereira da Silva, um vereador da época, a Linha 1 – Azul atenderia às zonas “mais ricas da cidade”, enquanto a segunda, “maior operariado” (O Estado de S. Paulo, 1968). Neste trabalho, decidimos testar a hipótese do camarista e nos perguntamos: a Linha 1 – Azul atendeu a qual camada social da população? Para responder a essa indagação, mapeamos as classes de renda residentes no entorno da linha à época de sua inauguração. E, com base nesse mapeamento, demos razão ao edil.
Verificamos que as camadas de alta renda da Região Metropolitana de São Paulo foram as mais beneficiadas com a implantação da linha. Nosso levantamento vai ao encontro de pesquisas internas da Companhia do Metropolitano que também verificaram maior presença das classes “rica” e “média alta” nos primeiros anos de operação do Metrô (Costanzo, 2016). O caráter classista dessa linha contraria a posição defendida por um técnico da Prefeitura, um ex-presidente da Companhia do Metropolitano e um ex-ministro da Fazenda do Brasil em entrevistas a nós concedidas. Para todos eles, o traçado da rede teria obedecido a preceitos estritamente técnicos. Não discordamos absolutamente dessa visão. Houve boas razões técnicas a embasar a escolha da Linha 1 – Azul como aquela a ser construída prioritariamente, mas não consideramos que esses tenham sido os únicos fatores a influir nessa decisão. Na conclusão, debateremos esses pontos à luz das posições de Francisco de Oliveira (1982) e Silvana Zioni (1999). O sociólogo e a urbanista atribuem o grande peso das “classes médias” na política urbana desse período ao desmantelamento das organizações de trabalhadores pela ditadura militar (1964–1985).
Metodologia
Primeiramente, delimitamos uma faixa de influência (ou buffer) de um quilômetro para cada lado do traçado da Linha 1 – Azul. Convencionamos denominar os habitantes do interior dessa faixa de influência como População Atendida e o restante dos habitantes como População Não Atendida. Tal metodologia já havia sido utilizada por Flávio Villaça e Silvana Zioni:
A afirmação de que isso foi convencionado reconhece que na verdade o que existe é uma população melhor atendida e outra pior atendida. A primeira é a população moradora dentro das faixas e a segunda a população moradora fora delas. Não se pretende com esse procedimento afirmar que a maior parte dos usuários do metrô seja constituída pelos moradores localizados dentro dessas faixas de 2 km. […] É sabido, por exemplo, que, com a enorme rede de ônibus que alimenta inúmeras estações de metrô, os passageiros que o utilizam moram a longas distâncias dele. Essa, entretanto, deve ser considerada uma situação excepcional e indesejada. Mesmo com o uso de bilhete único[3], a situação deve ser considerada perniciosa. Bilhetes únicos podem resolver o problema financeiro do custo da passagem para o usuário, mas nunca resolverão o problema representado pelo tempo perdido em transportes e que rouba preciosas horas de sono e arruína a saúde do usuário. (Villaça; Zioni, 2005, p. 22-23).
Extraímos os dados de renda e as macrozonas da Pesquisa Origem e Destino 1977 (EMPLASA, 1978)[4]. Devido a restrições de ordem estatística, o Metrô representou a Região Metropolitana de São Paulo de duas formas: zonas Origem e Destino e macrozonas. As macrozonas são formadas por 16 divisões, sendo que nove delas são internas ao município de São Paulo e as demais recobrem 26 municípios. A macrozona Centro Expandido é delimitada pelos bairros da Lapa, Pinheiros, Vila Mariana, Aclimação etc. Em seu interior, existem bairros de alta renda (caso do Jardim Paulista) e bairros de baixa renda (caso da Bela Vista). O Metrô, contudo, somente disponibilizou os dados de renda agregados por macrozona. Mesmo com esse agrupamento, que uniu a Bela Vista aos Jardins, o Centro Expandido continua sendo a macrozona com a maior renda mensal familiar de toda a Região Metropolitana.
A camada “área urbanizada de 1974”, presente na Figura 2, foi elaborada pela Unidade de Cartografia da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano (EMPLASA, 2002).
A separação em classes de renda foi feita através do método Natural Breaks (Jenks), no software Arcgis. Os valores de renda foram corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor do Município de São Paulo (IPC-SP FIPE), através da Calculadora do Cidadão[5]. Para a correção, consideramos “data inicial” como junho de 1978 (por ocasião do lançamento da Pesquisa Origem e Destino 1977) e “data final” como junho de 2018 (por convenção). Os valores de salário mínimo foram corrigidos de cruzeiros[6] de junho de 1977 (data da realização das entrevistas da Pesquisa) para reais[7] de junho de 2018 (por convenção) por meio de uma ferramenta elaborada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo[8].
Resultados
A partir de nosso mapeamento, verificamos que 369.256 pessoas foram atendidas pelo Metrô em 1977. Isso equivale a 3,6% da população da Região Metropolitana de São Paulo ou a 7% da população da capital paulista. Não bastasse o percentual diminuto da população atendida, as classes de renda não foram atendidas de forma igualitária.
Figura 2 – Renda média familiar mensal e faixa de influência da Linha 1 – Azul do Metrô de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
Gráfico 1 – Estrato mais rico da população – Região Metropolitana de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
A camada mais rica foi a mais beneficiada com a implantação da linha. Pouco mais de um milhão e cem mil pessoas (1.155.423) pertenciam ao estrato mais rico (auferindo, na média, R$ 3.702,52 de renda mensal familiar, em valores atualizados). Elas representavam 11,2% da população total da Região Metropolitana de São Paulo. Desse estrato, 13% (ou 153.175 pessoas) foram atendidas pela Linha 1 – Azul.
Gráfico 2 – Segundo estrato mais rico da população – Região Metropolitana de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
À medida que diminuía a renda, também decrescia o número de atendidos pela Linha 1 – Azul. Pouco mais de quatro milhões de pessoas (4.046.795) pertenciam ao segundo estrato mais rico da Região Metropolitana de São Paulo (com renda média mensal familiar entre R$ 1600,01 e R$ 2150,00, em valores atualizados). Elas representavam 39,4% da população total dessa região. Contudo, apenas 4,3% (ou 173.976 pessoas) desse estrato usufruíam da linha. Esse atendimento é três vezes menor do que aquele recebido pela camada de mais alta renda.
Gráfico 3 – Estrato mediano da população – Região Metropolitana de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
O grau de atendimento continua minorando, até quase zerar. Praticamente três milhões e meio de pessoas (3.491.834) pertenciam ao estrato mediano (cuja renda média mensal familiar situava-se entre R$ 1.235,01 e R$ 1.600,00, em valores atualizados). Elas representavam 34% da população total da Região Metropolitana de São Paulo. Desse estrato, somente 1,2% (ou 42.104 pessoas) foram atendidos pela Linha 1 – Azul. Como podemos observar na Tabela 1, os habitantes com essa renda residiam majoritariamente na Zona Norte de São Paulo. E era nessa zona que a linha menos adentrava, com meros um quilômetro e 770 metros de extensão.
Gráfico 4 – Segundo estrato mais pobre da população – Região Metropolitana de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
Agora, chegamos às parcelas da sociedade que não receberam atendimento pelo metrô recém-inaugurado. Aproximadamente um milhão e meio de pessoas (1.430.971) pertenciam ao segundo estrato mais pobre da Região Metropolitana de São Paulo (auferindo entre R$ 925,01 e R$ 1235,00 de renda média mensal familiar, em valores atualizados). Elas representavam 13,9% da população total da Região. Desse estrato, nenhuma pessoa foi atendida pela Linha 1 – Azul.
Gráfico 5 – Estrato mais pobre da população – Região Metropolitana de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
A camada social de menor renda da população também não foi beneficiada pela linha. Pouco menos de 150 mil pessoas (148.405) pertenciam ao estrato mais pobre da Região Metropolitana de São Paulo (auferindo entre R$ 635,98 e R$ 925,00 de renda média mensal familiar, em valores atualizados). Elas representavam 1,4% da população total dessa região. Desse estrato, nenhuma pessoa foi atendida pela Linha 1 – Azul.
Tabela 1 – Extensão de Metrô (em km) por macrozona – Região Metropolitana de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
Outros dados referendam o nosso entendimento de que essa linha priorizou as camadas de renda mais elevada.
Como já dissemos, a linha foi criada para viabilizar a ampliação da circulação de carros no centro da capital paulista, a partir da retirada de linhas de ônibus das ruas (Scarcelli, 2020). O setor terciário – que se localizava mais acentuadamente no centro da cidade – seria beneficiado pelo maior afluxo de automóveis particulares. Mas não só. A própria Linha 1 – Azul atravessaria essa região, como podemos ver na Figura 3.
Figura 3 – Emprego por classe de atividade – Setor Terciário – Região Metropolitana de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
O serviço público também foi favorecido. A Figura 4 mostra a grande concentração desse setor na Sé, distrito onde foi instalada a maior estação da Linha 1 – Azul.
Figura 4 – Emprego por classe de atividade – Funcionalismo Público – Região Metropolitana de São Paulo – 1977
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da Pesquisa Origem e Destino 1977.
E quais eram as pessoas que trabalhavam nos setores de serviços públicos ou privados? Em dissertação intitulada “A nova classe média brasileira: 1950 – 1980”, Waldir Quadros avalia que a “classe média” trabalhava majoritariamente “nas funções de gestão pública e privada”, no “Comércio de Mercadorias” e no “Comércio de Imóveis, Valores Imobiliários, Crédito e Seguros” (Quadros, 1985). Francisco de Oliveira tem um entendimento parecido. Para ele, o capital monopolista teria criado uma “classe média” composta de “gerentes, gestores, especialistas em mercadologia” que comporiam uma “fração de trabalho improdutiva” (Oliveira, 1982). E esses setores econômicos estavam alocados no centro da cidade, sendo servidos pela primeira linha de metrô do Brasil.
O atendimento das camadas de mais alta renda, nos primeiros anos de operação da linha, já foi reconhecido pela própria Companhia do Metropolitano de São Paulo. Daniela Costanzo sistematizou alguns dados dos estudos de caracterização do usuário do Metrô e produziu a Figura 5.
Figura 5 – Classes sociais no Metrô – 1971 a 1981
Fonte: Costanzo, 2016.
Em 1974, quando a linha foi inaugurada, os relatórios mostraram que o público era composto majoritariamente de passageiros das classes “média” e “média alta”, os quais, somados, superavam com sobras o número de passageiros “pobres” e “muito pobres”. A participação das camadas pobres e muito pobres cresceria ligeiramente em 1975, quando da inauguração da estação Santana (e seu terminal de ônibus). Essa é uma das três estações que atendem a macrozona Norte, a mais pobre da cidade.
Conclusão
A escolha da primeira linha de metrô a ser construída no Brasil foi, antes de tudo, política. Um ano antes da contratação dos estudos de demanda, o prefeito interino da capital paulista, Manoel de Figueiredo Ferraz, dizia “já ter uma ideia do traçado da primeira linha, a Norte – Sul[9], de Santana a Vila Mariana, esperando que os técnicos o confirmem” (O Estado de S. Paulo, 1967; grifo nosso). É preciso dizer que a decisão foi amparada por argumentos técnicos. Em favor de tal escolha, também pesaram aspectos de integração urbana, de facilidade construtiva e de atendimento à demanda (Scarcelli, 2020).
Havia uma espécie de consenso em torno da priorização da Norte – Sul. O prefeito Prestes Maia (1961–1965) tinha clara preferência por essa linha (O Estado de S. Paulo, 1961), a ponto de deixar terrenos reservados e estações semiacabadas. O governo estadual, por sua vez, manifestava predileção pela Norte – Sul desde 1962 e prometia aportar recursos (São Paulo, 1962) para a implantação dela. Veículos da imprensa – como o jornal O Estado de S. Paulo – e da mídia especializada – como as revistas Engenharia, Ferrovia e Ferroviária – nunca discordaram da ideia de que essa linha deveria ser a primeira a ser construída.
Por fim, nenhum vereador se opôs à priorização desse traçado, exceto Odon Pereira da Silva, que havia compreendido o caráter político da decisão. Em defesa da Linha Leste – Oeste, que, segundo ele, atenderia “maior operariado”, Pereira da Silva alegava que essa camada social tinha severos “problemas de comunicação” com o centro da cidade, devido às precárias condições de transporte (O Estado de S. Paulo, 1968). Na visão do edil, a escolha da Norte – Sul visava atender aos habitantes de maior renda: “para todas as administrações municipais, sempre só existiram duas zonas: a Sul e a Centro. É só verificar, neste momento, o número de obras em andamento nessas regiões. Por coincidência, são as duas zonas mais ricas da cidade” (Folha da Tarde, 1968). O camarista, no entanto, foi uma voz solitária na defesa de uma linha de metrô para os mais pobres, uma vez que, em nossa pesquisa (Scarcelli, 2020), não localizamos nenhuma oposição da sociedade civil.
Nesse trabalho, a verificação das classes de renda que foram mais bem atendidas pela Linha Norte – Sul demonstra a acuidade da análise do vereador Odon Pereira da Silva: os ricos foram os maiores beneficiários dela. Quando a linha alcançou uma região mais pobre (caso da Zona Norte de São Paulo), o fez de forma diminuta, com meros 1,77 km de extensão. Trata-se de um índice muito inferior ao das outras macrozonas, como pudemos ver na Tabela 1. Isso forçou os habitantes dessa periferia a continuar utilizando ônibus para alcançar o Centro ou a estação Santana do Metrô. De acordo com o consórcio Hochtief-Montreal-DE-Consult, que elaborou estudos para a construção do metrô, o transporte por ônibus, já em 1968, era “insuportável” (HMD, 1968). Isso porque “a capacidade da rede viária central” estava “praticamente esgotada” (HMD, 1968), o que aumentava não apenas o tempo de espera pelos coletivos mas também a lotação dos veículos e a duração das viagens. Entre 1968 e 1978, a velocidade do trânsito só iria diminuir, obrigando muitos a saírem mais cedo de casa, entre 3h e 4h da madrugada (Scarcelli, 2020). Os danos à saúde dos trabalhadores – pela quantidade de horas que passavam em pé, em ônibus lotados, após uma curta noite de sono – são incomensuráveis.
Explicitar o caráter político da Linha 1–Azul lança novos olhares sobre certo discurso tecnocrata, presente até os dias de hoje. Em entrevista a nós concedida, Akihiro Ikeda, economista do Grupo Executivo do Metropolitano (GEM)[10], afirmou que as decisões de traçados eram apolíticas e que obedeciam a dados estatísticos obtidos de um computador (Scarcelli, 2020). Plinio Assmann, ex-presidente do Metrô de São Paulo, manteve-se nessa mesma direção e afirmou que “a decisão da prioridade da Linha Norte – Sul foi sobretudo técnica”[11] (Scarcelli, 2020). Antonio Delfim Netto, economista do GEM e ex-ministro da Fazenda do governo federal[12], também recusou a hipótese de um traçado decidido politicamente e recomendou que, em nossa pesquisa, procurássemos pelas razões técnicas. Permitam-nos ser enfáticos: não discordamos da tecnicidade dos critérios que embasaram a escolha da Norte – Sul como a primeira linha do Metrô de São Paulo. Contudo, é preciso reiterar que esses não foram os únicos fatores a influir nessa escolha. Os dados apresentados neste artigo evidenciam que essa linha atendeu aos habitantes mais ricos da metrópole, num momento em que as organizações de trabalhadores eram severamente reprimidas pela ditadura militar.
Analisando esse período, o sociólogo Francisco de Oliveira viu uma grande preponderância das “classes médias” nos rumos da política urbana. Para ele, a aniquilação de sindicatos e partidos de esquerda, por parte do regime ditatorial, resultou em políticas severamente classistas:
Essa enorme gravitação das classes médias traduz, por outro lado, o fato de que no pós-64 o desmantelamento da organização econômica e política das classes trabalhadoras tornou-as, na verdade, agentes sem voz dentro da estrutura política brasileira e excluídas do aparelho de Estado, reforçando essa contradição. Sem organização econômica e política das classes trabalhadoras, o Estado passa, desse ponto de vista de investimentos e do gasto público, a atender sobretudo às demandas das classes médias que estão nas cidades, criando esse paradoxo de que uma cidade como São Paulo, cujo orçamento é o terceiro do país, depois do próprio orçamento da União e depois do orçamento do Estado de São Paulo, seja dinamicamente incapaz de atender às demandas que vêm das classes sociais mais baixas […]. (Oliveira, 1982, p. 51).
Igualmente, Silvana Zioni afirma que certas políticas de mobilidade só saíram do papel porque atenderiam a interesses das classes dominantes. Segundo a urbanista, o discurso tecnocrático viria para legitimar decisões:
Dessa feita, a intervenção do Estado, em termos de investimentos num novo modelo de acessibilidade e circulação e, para tanto, na constituição de órgãos técnicos, administrativos e gerenciais, foi praticamente simultânea e efetiva, talvez porque este novo modelo de acessibilidade formulado em planos setoriais (e recomendado nos planos urbanísticos), de fato, correspondesse a interesses das classes dominantes e, portanto, havia um real esforço para que fossem executados, sendo uma forma tecnocrática de legitimação da ação do Estado. Isso é mostrado por Villaça (1999) quando, analisando a história do planejamento urbano no Brasil, ressalta que o estudo de viabilidade do Metrô de São Paulo foi priorizado em relação ao PUB – Plano Urbanístico Básico, desenvolvido em fim de gestão. (Zioni, 1999, p. 110).
Figura 6 – Início das obras da Linha 1– Azul, no Jabaquara
Fonte: Centro de Memória do Metrô.
Nesse contexto, é simbólica a imagem do prefeito Faria Lima – que também era Brigadeiro da Aeronáutica – avançando com um trator em meio à multidão. A fotografia foi registrada em 14 de dezembro de 1968, durante a festa de início das obras da Linha 1 – Azul. Ao redor do prefeito, lemos nas faixas: “Metrô significa confiança no futuro do Brasil” e “Metrô é progresso”. Com esses dizeres, Faria Lima pedia a lealdade do povo. Bastaria um pouco de “confiança” que o “progresso” logo viria. É triste constatar que essa promessa nunca se cumpriu. Flávio Villaça e Silvana Zioni, em 2005, analisaram os traçados de todas as linhas do Metrô paulistano e verificaram que elas permanecem atendendo à população mais rica da metrópole (Villaça; Zioni, 2005). O Metrô reproduziu, assim, o nosso padrão periférico de urbanização: “os bairros de pior mobilidade são os dos moradores de baixa renda, situados na periferia longínqua”, enquanto que os mais ricos residiam nas áreas centrais (Maricato, 2000). A Linha 1 – Azul foi criada, em boa medida, para quem usa colarinho branco. A ralé continuaria chacoalhando nos ônibus e nos trens.
Referências
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EMPLASA – Empresa de Planejamento da Grande São Paulo. Mapa da expansão da área urbanizada da Região Metropolitana de São Paulo. 2002, https://emplasa.sp.gov.br/
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[1] O título do artigo faz referência ao filme A classe operária vai ao paraíso (1971), de Elio Petri. “Paraíso” assume dupla conotação: pode ser entendido como a estação Paraíso do Metrô paulistano ou como o Éden.
[2] The title of this article refers to Elio Petri’s film The working class goes to Heaven (1971). In Portuguese, the corresponding word for “Heaven” (“Paraíso”) has a double connotation: it can be understood either as Eden or as the name of a metro station on Line 1 of the São Paulo Metro.
[3] Cartão eletrônico que permite o embarque em até quatro ônibus, pagando apenas uma tarifa.
[4] A cada dez anos, o Metrô realiza as Pesquisas Origem e Destino com o objetivo de mensurar os desejos de deslocamentos da população da metrópole (Metran; Hiroi; Nogueira, 2017).
[5] https://www3.bcb.gov.br/CALCIDADAO/publico/exibirFormCorrecaoValores.do?method=ex ibirFormCorrecaoValores.
[6] Nome da moeda vigente à época.
[7] Nome da moeda atualmente em vigor.
[8] http://aplicativos.tjes.jus.br/corregedoria/RelatoriosArrecadacao/ListarSalarioMinimo.aspx.
[9] O prefeito utilizou o nome antigo da linha. Desde 1993, a “Norte – Sul” se chama “1 – Azul” (Labate, 2018).
[10] Órgão criado pela Prefeitura de São Paulo em 1966 que foi responsável por contratar os estudos de traçados.
[11] Em entrevista a nós concedida.
[12] Em entrevista a nós concedida.